Bonjour...
Aqui, ele reflete sobre a obra O Inominável, de Samuel Beckett.
"(...) a obra não é de modo algum, para o homem que se põe a escrever, um recinto fechado no qual permanece, em seu eu tranquilo e protegido, ao abrigo das dificuldades da vida. Talvez ele acredite mesmo estar protegido contra o mundo, mas é para expor-se a uma ameaça muito maior, e mais perigosa, porque ela o encontra desprevenido: aquela mesma que lhe vem do fora, do fato de que ele se mantém no fora. E contra essa ameaça ele não deve defender-se, deve, pelo contrário, entregar-se a ela. A obra exige que o homem que escreve se sacrifique por ela, se torne outro, não um outro com relação ao vivente que ele era, o escritor com seus deveres, suas satisfações e seus interesses, mas que se torne ninguém, o lugar vazio e animado onde ressoa o apelo da obra.
Mas por que a obra exige essa transformação? Podemos responder: porque ela não poderia encontrar seu ponto de partida no que é familiar, e porque busca o que nunca antes foi pensado, nem ouvido, nem visto; Mas essa resposta parece deixar de lado o essencial. Podemos ainda responder: porque ela priva o escritor, homem vivo e vivendo numa comunidade em que tem poder sobre o útil, apóia-se na consistência das coisas feitas ou a fazer, e participa, quer queira, quer não, na variedade de um projeto comum; porque priva esse vivente de mundo, dando-lhe por morada o espaço do imaginário; e é, em parte, o mal-estar de um homem caído fora do mundo e, nessa distância, doravante incapaz de morrer e de nascer, atravessado por fantasmas, suas criaturas, nas quais ele não acredita e que não lhe dizem nada, o mal-estar evocado pelo Inominável. Entretanto, essa ainda não é a verdadeira resposta. Encontramo-la antes no movimento que, à medida que a obra tenta realizar-se, a traz de volta ao ponto em que enfrenta a impossibilidade. Ali, a fala não fala mais, ela é; nela nada começa, nada se diz, mas ela continua sendo e recomeça.
É essa aproximação da origem que torna cada vez mais ameaçadora a experiência da obra, ameaçadora para aquele que a porta, ameaçadora para a obra. Mas é também somente essa aproximação que faz da arte uma busca essencial, e é por tê-la tornado sensível da maneira mais abrupta que O inominável tem mais importância para a literatura do que a maior parte das obras 'bem-sucedidas' que ela nos oferece..."
(BLANCHOT, Maurice. O Livro por Vir. São Paulo: Martins Fontes,2005. Trad. Leyla Perrone-Moisés, p 316-317)
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